ATENÇÃO: Relato de violência policial cometida contra uma
manifestante que estava no ato de 13/06/2013, em São Paulo. Circulem, façam
rodar!
“Talvez o relato
falhe por escaparem-me detalhes como os horários e a sequência dos fatos, pois
estava sozinha - e perdida de todos que esperava encontrar, ou surda pelo
terror do que não esperava encontrar. O fato é que estava lá, levando minha
presença como única forma possível de apoio à manifestação que me era possível
naquele momento, acreditando como todos que dessa vez algo era diferente, algo
era como não era há muito tempo. Durante parte desse “muito tempo”,
restringi-me a manifestações em nome do respeito irrestrito à minha existência
como mulher - e não, como se pode pensar, à minha “condição” de lésbica pois
nada se condiciona a isso. Ontem, pensei estar na rua por outra causa - e
percebi que a causa sempre será a mesma.
Foi até curioso
como num primeiro momento senti algo de libertário e igualitário na ideia de
que sublimavam-se as diferenças entre os manifestantes para que a mesma
bandeira fosse levantada por todos - e fiquei inebriada nessa inocência até ser
lembrada de que o senso de solidariedade coletiva pode até parecer se esquecer
das diferenças - mas a repressão não. Fui tratada como igual durante os tiros
de bala de borracha, as bombas de gás, a correria, o desespero, o não saber
para onde ir, a tentação de se arrepender por estar ali - mas não quando a
repressão tomou forma e corpo de homem, de farda, sem identificação, aquela que
tem forma mas não tem rosto, ainda que eu saiba que é um rosto do qual eu não
vou me esquecer. No desespero e
ineficiência da corrida, fui pega pela gola da camiseta do MPL que ganhei de
presente de uma amiga militante - e que tive orgulho de usar. Não me lembro se houve
abuso na revista. Mas nada foi encontrado - então a frase que ouvi foi “tira a
blusa, vagabunda”. Eu teria começado a chorar de pânico ali, se o recurso não
estivesse sendo gasto pela resposta fisiológica ao gás lacrimogêneo. Disse que
não. Tomei um tapa na cara que me fez engasgar no soluço do choro que não saía.
Fui segurada pelo rabo de cavalo e bem perto do meu ouvido ainda quente da
agressão, ouvi “tira a blusa que vou levar de souvenir”. Disse que não mais uma
vez, dessa vez pedindo por favor, e a resposta foi um puxão pela gola da
camiseta até rasgá-la, e eu fiquei lá, de sutiã, diante de três (ou eram mais?)
policiais, que passaram minha blusa de mão em mão dizendo procurar cheiro de
vinagre mas “que delícia esse perfume, hein, vadia?" A impressão que tive
era que o mundo inteiro não existia mais, nem o mundo, nem a causa, nem eu
mesma, nem eles, só o medo e o vazio e o barulho de todo um universo que
parecia se afastar; e fiquei em silêncio. O
silêncio foi interrompido pelo zunido dentro da minha cabeça quanto o policial
que acabara de jogar minha camiseta no chão passou o cassetete pelo meu sutiã,
sorriu e disse que estava na dúvida se ia “querer só a camiseta de lembrança do
nosso encontro”. Já ouvi dizer que nosso inconsciente não sabe processar a
negativa, mas tudo que pude repetir, baixo e alto, foi “por favor, não”. Nessa
hora, do vazio ao redor, uma pedra atingiu o ombro daquele homem, e os três
correram para conter o vandalismo contra o tal aparelho do estado. Peguei minha
camiseta e corri, nem sei pra onde, nem sei como, nem sei quem - eu acho que
naquela hora eu nem sabia quem estava correndo, e nem do quê.
Curiosamente,
poucos meses antes, eu estava naquele mesmo lugar, de sutiã, em protesto,
exigindo ter maior propriedade sobre meu corpo e sobre as decisões a ele
pertinentes. Eu acho que não consigo lembrar da sensação de outrora de orgulho
por entender que a imagem do meu corpo não significa a exibição dele - não sou
uma objeto de arte para ser exibido. Naquele momento, tudo que havia era o medo
e a vergonha, essa que eu nem sei do que, e nem sei por quê. Talvez vergonha
por ter acreditado que naquele momento limítrofe de barbárie, estavam
desconstruídas também as convenções sociais - não só as que prezam pelo mínimo
de respeito, ética e moral, mas também as que me oprimem como mulher -, e que
pelo menos naquele momento meu alerta poderia estar voltado a algo que me
competisse dissociado do meu gênero. Acho que o ferimento que doi mais nem
passa perto de ser o ponto que restou na minha boca (que - veja só que poético
- confunde o gosto de amargo que ficou nela desde então); é aquele
irreversível, aquele que invalidou todo um sentido de existência do qual achei
que tivesse me apropriado, aquele que manchou o orgulho que sempre tive de usar
o meu corpo como mensagem de resistência. Foi uma marcha de vadia só. Ontem,
tive vergonha por perceber que ainda sinto deixar que meu corpo seja usado
contra mim por mais que brande o contrário - e medo por ver que externa e
internamente, esta batalha está longe de acabar.No entanto, nem tudo é decepção. Perceber-se quebrável, sensível e frágil rende um primeiro momento de sentimento de impotência, incompetência, inoperância… mas um segundo momento de fagulha de euforia, ânimo e esperança também, ao perceber que outros que amanheceram - como eu - quebrados, estão aos cacos se juntando e contando histórias e planejando como será o amanhã. Se vale a metáfora, somos vários vasos quebrados que agora desistiram de colar suas próprias peças numa imitação do que costumavam ser. Hoje somos um vitral. Hoje queremos ser um mosaico que junte os cacos que a repressão deixou para montar o nosso próprio afresco. Pra saber que dessa história, sim, todos fazemos parte - ainda que aos pedaços. E essa obra vale bem mais que 20 centavos.”
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